sexta-feira, setembro 24, 2010

Dúvida


Chegas e não bates à porta.

Entras, fria e distante e sentas-te. Sorris.

Ali mesmo, junto a mim, à minha secretária feita de sonhos e ilusões, coisas doces e noites boas.

Não falas nem vês. Só escutas. Só olhas. E o teu olhar é tão penetrante e atroz que me congela os dedos. Não posso escrever mais. Impedes o meu raciocínio de arrancar. Atrofias, por fim, toda a máquina que me faz produzir.

Então páro e finalmente evito mais o ter de te ignorar.

Falas comigo em linguagem de amor, de vida, de crueldade. Falas de mim, do meu passado, do meu presente. Bebes água porque não te queres deixar embriagar e atiras para o ar a arma que sabes que me deixará no chão.

Dizes adeus e sorris, com o mesmo sorriso que me atiraste no momento em que entraste. Só que agora sei do que te ris, sei do que troças, sei o prazer que te dá ver-me só.

Fecho-te a porta com raiva doce, com lágrimas de sal e com sapatos de veludo.

Ali, na cadeira onde te sentaste, que tem rodas e é fria como a Serra da Estrela em Janeiro, sentou-se o meu futuro. O presente que me deixaste. Queres que fale com ele e lhe pergunte se quero que fique.

Mas não quero. Nem falar, nem deixá-lo ficar. Quero que parta contigo e me deixe sozinha. Eu sei que ele já não é o meu melhor amigo. O Futuro.


Foto: aqui

quinta-feira, setembro 16, 2010

Fazer conversa... com conteúdo

- Você é jornalista. E gosta do que faz?

- Gosto de ser jornalista. Mas não gosto do que faço.

(Quero mudar de vida, porra)

Gostar muito

Gostar muito não basta.
É preciso ser-se reconhecido.
Gostar muito é pouco.
Quando o nosso valor é esquecido.
Gostar muito é nada.
Quando a dedicação é respondida à facada.
Gostar muito ou pouco é mesmo inútil
Quando tudo em redor perde o sentido e se torna fútil
Quando as paixões são abafadas pela incapacidade
E quando o nosso maior sonho fica reduzido à imbecilidade.
Mais vale não gostar, ou aprender a deixar de gostar
De tudo aquilo que um dia se aprendeu a adorar.

quarta-feira, setembro 01, 2010

A aventura, os limites e o desconhecido Caminho de Santiago Português


São 17h e o calor aperta forte. A mochila já está às costas, o chapéu na cabeça e o equipamento a rigor. Na mão, a garrafa de água e, no peito, uma ansiedade incontrolável. Parto. Disso tenho a certeza. Há despedidas, acenos e “boas sortes”. Há “tenham cuidados”, “até breve” e, o pior de todos os conselhos, “se não aguentares, desiste”. O Caminho de Santiago começa a ser desbravado nos limites da aventura e nas bermas do auto-conhecimento. Nos próximos dez dias, muitos quilómetros serão feitos, muitas culturas trespassadas e, acima de tudo o resto, muitos limites serão postos à prova. E irão vencer. Até breve. 250 quilómetros separam-me do padroeiro.


“Agora não há volta a dar”, penso enquanto inicio a primeira subida do dia. Perosinho é hoje uma terra estranha, que perde a familiaridade de tantos anos de vida, e se começa a revelar o início de uma grande incógnita. As primeiras gotas de suor começam a cair à medida que se aproxima a temida Serra de Canelas.
A calçada romana é fresca e plena de árvores. Do cimo avistam-se abertas que deixam vislumbrar a terra que deixo. Continuo a caminhar. Conheço o lugar, os cheiros da terra, a força do caminho íngreme. A mochila, que até agora nem sentia, começa a recordar-me que não estou só. Há mais seis quilos de peso que se fazem sentir sobre os ombros.
Uma hora depois chego a um dos pontos mais altos da etapa: Alto das Torres. Paro para o primeiro abastecimento de água. Sei que até Santo Ovídio a inclinação será contrária à vontade do corpo. Os gémeos doem e começam a sentir-se os primeiros sinais do peso sobre os pés: “Acho que estou a fazer bolhas”. O tendão de Aquiles está vermelho e saem os primeiros pensos rápidos. Chegava o primeiro contratempo e, com ele, o lado menos bom da peregrinação.
A chegada ao Porto foi menos feliz do que o esperado, com o desalento da falta de indicações de percurso. Ao embater de frente com a Igreja da Lapa, ganho também noção de que estou perdida. Não há continuação, não há informação, não há solução. Procuro quase desesperadamente uma seta amarela (o Caminho de Santiago está assinalado por setas amarelas pintadas à mão). Sem sucesso. Passa das 20h e os comerciantes já recolheram. O Porto é perigoso a esta hora e decido parar por ali. Um prego em pão parece-me perfeito para me recompensar o esforço indecifrável das primeiras horas de aventura. A noite seria na Pousada da Juventude. E seria mal dormida. Temida. De muita reflexão.


“Serei capaz?”
As dores nas costas com que o primeiro dia de percurso me brindou avisavam que o dia dois não seria etapa fácil. Percebo que a perfeita regulação da mochila poderia ser a chave da superação e, aí, retiro da mente o enorme peso do medo. Aos poucos, a bagagem passa a fazer parte de mim e a cair num poço de esquecimento que apenas bate à porta da lembrança com pequenos picos de dor.
Despeço-me do feio cenário citadino do Porto, atravesso o equivalente centro da Maia e percebo que a decisão de seguir pela Ponte de Moreira, evitando a travessia da perigosa EN13, revelar-se-ia uma aposta ganha. O aproximar da ruralidade das aldeias maiatas faz aumentar o ânimo, que só decairia perto da hora do almoço, com a consagração: uma bolha no pé esquerdo. O diâmetro de cerca de dois centímetros deitava por terra toda a confiança ganha de manhã.
Iniciava-se a verdadeira peregrinação. Fazer a vontade de chegar esquecer a dor física e o sacrifício começou a entrar na rotina e, minutos mais tarde, não havia praga que retirasse o sorriso do rosto. Encontro pelo caminho os primeiros peregrinos. Falam alemão e espanhol e iriam encontrar-me no antigo e pouco acolhedor Albergue de São Pedro de Rates. À noite, o sentimento é duro, mas de vitória. Consegui. 37 quilómetros cumpridos em pouco mais de dez horas de caminho era mesmo uma grande bandeira de vitória.


“A sofrer, a sofrer, mesmo sem poder”
A aparente curta distância da terceira etapa permitia fazê-la com alguma calma. Mas o descanso que me acompanhou desde as 6h cedo começou a pesar. As pernas não mexem ao ritmo do dia anterior e as poucas horas de sono reflectem-se na grande dificuldade em romper a etapa de pouca dificuldade. Mesmo assim, pouco passa das 10h quando se dá a chegada a Barcelinhos. Convenço-me de que a etapa está praticamente concluída, mas a informação de que ainda faltam mais dez quilómetros para atingir o Albergue da Recoleta, em São Pedro de Fins, atira por terra o alívio. Rapidamente os 15,5 quilómetros da etapa se transformaram em dolorosos 25. Sob um sol irrespirável e a trepar uma inclinação quase impraticável, eis que se dá a chegada ao albergue. As excelentes e modernas condições da estalagem fazem esquecer o sofrimento da etapa. Mas a descida brusca da tensão arterial relembra que o corpo também se queixa, quando o esforço é muito.
O dia seguinte seria novamente de dificuldade pouco acentuada. Entre Barcelos e Ponte de Lima, as pingas de orvalho molharam nas primeiras horas da manhã, mas dissiparam-se à medida que se aproximava a bonita cidade minhota. Batiam as 12h quando chegava a Ponte de Lima e cinco horas distavam até à abertura do Albergue de Peregrinos. Quando as portas se abrem, o paraíso do descanso e das excelentes condições espreita. Há peregrinos de diversas nacionalidades. Alemães, canadianos, franceses, italianos, espanhóis e brasileiros. Portugueses só nós. Mas o convívio acabaria mesmo por se revelar uma das mais interessantes ofertas do caminho.


“A Serra da Labruja sobe-se de nariz no chão”
Disse-me o simpático e familiar hospedeiro de Ponte de Lima, aconselhando-me a descansar a meio da etapa que já levava esboçada. Decidi partir à aventura para aquela que se revelaria a pior e mais dolorosa etapa de todo o caminho. O pico da dificuldade dava-se no mesmo dia em que a dor no osso da bacia que me massacrava desde o dia anterior começava a tornar-se atrofiante. Não foi. E a Serra da Labruja surgiu. Medrosa e assustadora. Inclinada e quase impraticável. Desesperante e quase motivadora de desistências. Mas não me venceu.
A beleza rural dos primeiros quilómetros do dia foi dando lugar a uma paisagem infinita de pinhal, onde não se avistava céu nem fim, e onde o pânico poderia surgir a qualquer momento. E vieram as tão temidas subidas. O coração bateu forte. E os joelhos gritaram. E o nariz quase tocou mesmo no chão. E elas repetiram-se, em inclinações impensáveis, em pisos de pedras incertas e dolorosas, vezes sem conta, batendo à porta do desespero. As pernas tremiam e o suor escorria. Mas venci. E Rubiães surgiu pequena e desoladora. Podia ter ficado por ali, acomodar-me no albergue existente. Mas decidi duplicar o número de quilómetros. Mais 20 me esperavam até Valença.
Não foram difíceis comparados com os primeiros quilómetros do dia, mas também nada mais o seria, depois de ter sido cruzada a dolorosa Serra da Labruja. Para trás deixei alemães e espanhóis. Só nos acompanharam os rostos conhecidos dos brasileiros, dos italianos e de um espanhol, que se revelaria um fiel amigo do caminho.


Adeus Portugal
É domingo. Saí terça-feira de casa e despeço-me agora de Portugal. Embora os 34 quilómetros da etapa de hoje não me permitissem facilitar, não previa uma jornada dura. Mas fiz mal em confiar no traçado do mapa e pior ainda nas boas horas de descanso, porque essas não foram capazes de preparar suficientemente o físico para a etapa seguinte à “rainha”. Às 6h15, Valença era fria e pouco atraente, enquanto Tui sorridente e desafiador a conhecer. Mas era domingo, dia sagrado na vizinha Espanha. Nada se passava.
Os caminhos verdes da bonita cidade espanhola deram lugar ao asfalto irregular, preponderante ao longo da jornada, fazendo os pés fervilharem. A chegada ao Porriño, por uma infinita zona industrial, acentuava o desinteresse pelo percurso do dia. Mas também de surpresas bonitas se fez o Caminho. À chegada à pequena localidade de Moz, onde parei para carimbar a credencial que testemunhou a minha passagem pelas diversas localidades, eis que um residente se confessa português e natural de Olival. Sorri pela ironia do destino e segui viagem em direcção a Redondela, onde chegaria cerca das 15h. Os últimos quilómetros do dia recordavam que quando o cansaço é muito já não há descidas boas nem subidas más. E as excelentes instalações do Albergue, numa antiga torre no centro da cidade, foram mal aproveitadas pelas poucas horas de sono. Nessa noite Espanha vencia o Mundial de Futebol e centenas de foliões infernizavam o descanso dos peregrinos.
Pontevedra, Caldas de Reis e Teo seriam os destinos das etapas seguintes. Santiago de Compostela estava de facto cada vez mais perto e já não havia mal capaz de desafiar a desistência. Mesmo assim, sinto as pernas a reflectirem os mais de cem quilómetros já percorridos. No destino a Pontevedra cruzo uma das mais bonitas localidades do caminho: Arcade era típica e envergonhada por entre as ruas inclinadas e as casas modernas e cuidadas. A chegada ao fim da etapa brindou com a paisagem descuidada e desoladora que assiste à entrada de quase todas as cidades espanholas. Mas Pontevedera é bonita e tradicional, com ruas cuidadas e comerciais e dezenas de citadinos a aproveitarem as horas do final da tarde nos imensos bares de “tapas e cañas”.
A Caldas de Reis chegaria no dia seguinte, após uma etapa verde e airosa, com pouco grau de dificuldade, permitindo afastar por mais tempo os pensamentos negativos e desfrutar mais do caminho. No percurso não vi alma humana. Por companhia, só o relaxante chilrear dos pássaros e o canto das quedas de água. Caldas de Reis, vila termal e acolhedora, marcou a diferença pelas caricatas condições do Albergue, adaptado às antigas instalações daquilo que parecia ser um restaurante desactivado.
Os 25 quilómetros da penúltima etapa começam a assustar à medida que se aproxima o fim. O cansaço dá de si nas primeiras horas do dia, sem ser capaz de ouvir o despertador. Apesar do nervosismo do atraso, o bom ritmo permite chegar a Padrón, cidade onde chegou, de barco, o corpo de Santiago, ao mesmo tempo que os peregrinos que haviam saído duas horas antes de mim. Abandonei a cidade antes de todos os outros e retomei o caminho. As aldeias foram-se sucedendo anónimas, em aglomerados de casas bonitas e rústicas, modernas e antigas, em ruas estreitas e sem trânsito. A Teo cheguei às 13h. Apesar da quase lotação do albergue, perdido no meio do nada, ainda encontrei uma cama para repousar. As parcas condições e a solidão da aldeia foram insignificantes, quando o coração já batia de ansiedade à espera da chegada do grande dia.


Enfim, Santiago
Quase não sou capaz de me recordar das ruas, dos caminhos, das árvores ou das pedras da calçada. A vontade de chegar era aqui mais forte do que nunca. O orgulho de ter conseguido alcançar 99 por cento do desafio era tamanho que abandonei o local de repouso ainda de noite. No meio dos pinhais escuros, nem a minha pequena lanterna era capaz de ajudar no caminho. Pouco importava. Nada temia, pois sabia que havia de chegar. Custasse o que custasse.
E custou, efectivamente. Porque perdi setas, avancei percursos e recuei novamente em busca do trilho certo. E encontrei-o. A manhã estava fria, mas pouco importava. Era hoje. Cheguei a Santiago quando o relógio da catedral espanhola batia as 8h. À porta do gabinete de apoio ao peregrino, já uma fila se formara à espera do carimbo final, aquele que certificava e testemunhava a chegada. Esperei. Nada mais havia a percorrer.
Havia, apenas, um misto de sentimentos. Não havia cansaço nem havia dores. Apenas uma grande alegria pela missão cumprida, pelo espírito de sacrifício e, em simultâneo, uma grande tristeza por ter chegado ao fim. Ter chegado ao fim a aventura, o desconhecido, o objectivo… o caminho.